quinta-feira, 10 de março de 2011

O que é que o Eu tem? (a mandíbula do cadáver)

As mãos gretadas esticaram o último cigarro na direcção do corpo roliço que esperava o táxi. Os três partiram: vício, mulher e carro. Agora só podia contar com ele – chamado Eu –, sem gabardina ou galochas para a chuva.

Mas tudo isto não combinava com o meu «eu». Em vez de me proteger da chuva preferia senti-la a tocar no meu corpo, a escorrer pela face. E pela face sinto as lágrimas correrem sempre que me entristeço ou que me comovo. E comovo-me facilmente quando vejo cenas do quotidiano que me desagradam, quando oiço histórias de velhos abandonados ou desprotegidos, quando leio um livro ou assisto a um filme que me toca profundamente. O que é que eu tenho diferente dos outros? Provavelmente sou mais sensível que a maioria e protejo-me com uma capa forte.

A capa serve para o Eu se fingir de super-herói. Com este adereço, o «Super-Eu» consegue voar a velocidades impensáveis e salta de prédio em prédio na cidade. Tanto salto e tanta instabilidade provocou no meu «eu» uma pilha de nervos! Mas, como me pagam para trabalhar e não para me enervar, resolvi saltar de um prédio de 10 andares e voar de prédio em prédio na cidade.

O Eu está mais consigo do que nunca agora. Pode já não ter tomates, nem ela, nem cabelo; quer pedir boleia e nem há caracol na estrada. Mas a bem-aventurança de ser Eu num mundo de caganitas pensantes ninguém lhe tira. O que é que afinal o Eu tem? Existência.

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